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Acessibilidade: Diretriz para a Inclusão

Acessibilidade é um processo (... que)
se desenvolve a partir do
reconhecimento social sobre deficiência como
resultado do grau de maturidade de um povo
para atender os direitos individuais de cidadania plena.

Hoje, em nosso país, milhões de brasileiros compõem um contigente de excluidos. São pobres, com pouca ou nenhuma formação educacional, desempregados, desqualificados em funções ocupacionais e produtivas, despreparados para ações cívicas, desnutridos, desmotivados em ascensão social, desesperançados. A situação de alguns pode ser até pior se forem, ainda, negros, mulheres sem família, mães solteiras, ex-condenados, viciados, doentes, dementes, idosos em fase avançada de vida. Porém, a exclusão pode se tornar impiedosa se, apesar de tudo, uma pessoa aparentar deformidade, falha ou falta de uma parte do organismo a ponto de ser considerada incapaz de viver sem que outra interfira a todo o momento para decidir sobre o que deve ser feito. Em todas as últimas situações mencionadas, o convívio com a organização de nossa sociedade se depara com a afirmação: “sinto muito, mas atender plenamente a sua necessidade de ser humano é impossível.”

É necessária e vital a inclusão das minorias que compõem a real maioria. Por muito tempo, pensávamos que uma pessoa nessas condições poderia ser feliz se estivesse integrada à sociedade. Até que, finalmente começamos a reconhecer que a principal causa da infelicidade dessas pessoas ocorre por causa dessa sociedade em que vivemos. Dessa forma, não faz sentido a integração de pessoas que não pertencem aos valores predominantes. Mais necessário é repensar esses valores para que haja inclusão. Ao mudarmos a sociedade juntamente com as condições dessas pessoas, estaremos transformando a elas e a nós mesmos. Estaremos transformando-as para entenderem nosso mundo, e assim como serem parte de nós. Estaremos transformando-nos para aceitá-las em essência e para podermos atuar nas causas que as tornam seres estranhos a nós. Diversidade é, então, nesses termos, sinônimo de felicidade, harmonia. O mundo passa a ser grande em significado, em comprometimento mútuo e pequeno na indiferença, na rejeição, no sectarismo.

Numa sociedade em que o valor das pessoas é, infelizmente, medido pelo seu grau de influência nas questões de poder financeiro e político, inclusão significa, ainda assim, a valorização da democracia pela valorização da cidadania dos menos favorecidos. A verdadeira democracia se manifesta quando os cidadãos estão em mesmo nível de igualdade de decisão sobre o futuro de todos a partir de seus interesses pessoais. Isso sim é o manifesto da maioria. Prevalece o valor democrático quando as oportunidades de deveres e de direitos se expressam de forma homogênea. A igualdade da história de todos se faz pelo respeito às diferenças da história de cada um. A opressão dos meios de uma maioria inerte e insensata cede lugar à valorização da forma de governo que existe no valor de cada indivíduo.

Se, do passado para o presente, muitas injustiças sociais tendem a persistir no mundo, a idéia da inclusão se manifesta como um desafio e como uma esperança. Desafio a pormos em prática, algumas formas de viver a cidadania ainda não experimentadas anteriormente. Esperança, a pormos em prática situações possíveis para resolvermos nossa evolução como fenômeno humanidade.

Já está comprovado por vários estudos e experimentações que a inclusão se manifesta pela transformação das atitudes, do comportamento, da administração, do atendimento e da organização físico-espacial ao longo do tempo. Inclusão se manifesta, então, através da acessibilidade.

Acessibilidade é um processo de transformação do ambiente e de mudança da organização das atividades humanas que diminue o efeito de uma deficiência. Esse processo se desenvolve a partir do reconhecimento social de que deficiência é resultante do grau de maturidade de um povo para atender os direitos individuais de cidadania plena. Deficiência é resultante do desajuste entre as características físicas das pessoas e as condições onde elas atuam. Não é, portanto, algo associado de forma específica a um tipo de pessoa. Não é coisa de “deficientes”, a não ser que entendamos cada um de nós sermos deficientes em lidar com a busca do aprimoramento pessoal e de ambientes mais adequados às nossas necessidades.

Qualquer pessoa pode, amargamente, experimentar uma deficiência num instante da vida em que precisa obter algo e em que as condições gerais do espaço construido não permitem as satisfação dessas necessidades. Uma criança experimenta uma deficiência quando tenta subir uma escada e percebe que os degraus são desproporcionais à sua perna, quando tenta chamar alguém pelo interfone ou atingir um andar por elevador e não consegue alcançar o botão de controle. Uma senhora experimenta uma deficiência quando quer sair de um automóvel pela porta de trás usando saia, meia fina e sapato de salto alto numa rua inclinada. Um garçom experimenta uma deficiência quando tem que passar no estreito espaço entre as mesas de um restaurante congestionado segurando pratos quentes em ambas as mãos. Um idoso experimenta uma deficiência quando tenta tomar banho num boxe de chuveiro público onde o piso é escorregadio. Todas essas situações de deficiência geram stress, um desgaste físico e emocional.

Nossa sociedade só reconhece deficiência humana quando se depara com pessoas que sofrem esse tipo de stress com o uso do meio edificado, constantemente, a cada minuto de sua vida. Considera essas pessoas portadoras de deficiência. Nesses casos,as situações de stress que dificultam a qualidade de vida de todos são mais intensas e por isso são identificadas como barreiras arquitetônicas para os portadores de deficiência. Mas, infelizmente, nossa sociedade faz pouco ou quase nada para eliminar as barreiras arquitetônicas existentes e para evitar que outras barreiras surjam por aí.

Como é difícil viver cada circunstância de nossos problemas imaginando que situações vivenciadas através da experiência dos outros podem ser importantes meios de compreender a nossa própria vida. É mais fácil para os que andam imaginar que a falta da acessibilidade é problema só daqueles usuários de cadeira de rodas ou de muletas; é mais fácil para os que enxergam imaginar que a falta de acessibilidade é problema só dos que não vêem a vida com os olhos; é mais fácil para os que calculam imaginar que a falta de acessibilidade é problema só daqueles que não processam a informação de modo convencional.

Verifica-se hoje uma grande repulsa à idéia da deficiência e ela se exprime na repulsa às chances de uma pessoa portadora de deficiência em viver uma vida saudável e comum. Ser saudável é viver em harmonia com seu corpo, com sua imagem, com seu espaço no mundo. Quando uma pessoa se torna portadora de deficiência, ela, hoje, perde as chances de desenvolver seu estudo, seu trabalho, suas relações afetivas, suas esperanças enquanto humano, sua imagem enquanto integrante de nossos modelos culturais. E, essa realidade, se concretiza a cada vez que oportunidades de aprendizado, de convívio social, de trabalho, lhe são negadas por suas condições físicas, sejam elas motoras, mentais ou sensoriais. Nesse ciclo vicioso, a deficiência chega a gerar incapacidade, um sentido de vazio, de inutilidade, mas ambas podem se anular somente pela prática da acessibilidade.

Há grande desinformação de que a eliminação dessas barreiras é possível sem grandes custos. Como resultado dessa remoção de barreiras, portadores de deficiência podem ter mais tempo em sua vida para agirem de forma natural, em que suas condições físicas não limitam seu poder de transformar sua vida para melhor e de contribuir para a melhoria de vida de outras pessoas de sua comunidade.

Com acessibilidade, a pessoa passa a investir em si mesma. O acaso de deficiências em caráter permanente não se sobressai nos investimentos pela qualidade do ambiente construido. A pessoa segue vivendo de modo pleno se a acessibilidade ocorrer em seu lar, em seu ambiente de trabalho, em seu ambiente de lazer, em seu ambiente de convívio social. Ao invés de perpetuar uma vida vegetativa sob noções de despesas públicas a fundos sociais sem retorno, desperdício, o beneficiado retorna o investimento em termos quantitativos, aferidos pela produtividade industrial, por exemplo, e qualitativos, aferidos pelo ambiente de vida participativa que passa a motivar.

Existem aí duas situações que devemos considerar: custo e viabilidade. Custo não é desperdício. É o preço pago na obtenção de um bem. Junto ao custo está sempre o benefício. Se acessibilidade exige custos, também traz grandes benefícios. Está comprovado que a acessibilidade prevista num projeto arquitetônico representa 0,1% dos gastos a serem feitos com um projeto convencional, cheio de barreiras. Estas despesas chegam a 35% a mais do que o preço convencional caso esteja inclusa a instalação de um elevador não previsto origináriamente. Viabilidade se refere aos resultados que se pode obter em função dos investimentos a ponto de justifica-los. A acessibilidade é viável imediatamente quando uma pessoa portadora de deficiência atua profissionalmente e reverte como contribuinte o investimento social aplicado em termos de serviços. a acessibilidade é viável a longo prazo quando o investimento aplicado se dilue para diferentes gerações juntamente com a formação educacional da cidadania.

De fato, nem sempre é possível a acessibilidade em ambientes já construidos, quando o acúmulo de barreiras exigem grande investimento para sua remoção e a transformação de atitudes conservadoras e de mentes inflexíveis. Porém, a acessibilidade é sempre possível quando as atitudes se voltam para evitar o stress de uma deficiência antes que ele se manifeste.

Isso nos faz pensar que devemos pensar em acessibilidade com previsão, sempre e sempre. Mesmo nos espaços já existentes, o investimento vale a pena quando contemplamos o passar do tempo. Errado é adotar medidas paliativas e incompletas, tais como, rampas íngremes e sem corrimão, por exemplo. Afinal, perde-se dinheiro fazendo-se errado o que poderíamos acertar numa só vez. Pior. Evita-se com este desperdício que as pessoas possam usufruir dos benefícios da coisa certa.

A acessibilidade deve, portanto, estar presente em todos os lugares. Só assim, o custo social das transformações pode ser pequeno. Quando a acessibilidade é restrita ou mal formulada, o dinheiro aplicado é jogado fora. Afinal, o espaço construido que se obtém não predispõe as pessoas a serem felizes e a buscarem mais acessibilidade, como um todo. Prevalecem idéias erradas, mitos, como esses a seguir: o custo é muito alto, poucas pessoas realmente necessitam, as alterações necessárias são complexas, as consequências são até comprometedoras por questões de segurança, praticidade, etc. Quando a acessibilidade é ampla e bem formulada, o que se observa é justamente o contrário. Ao invés do inviável, do grotesco, do absurdo, obtém-se o funcional, o seguro, o conveniente, o belo, o agradável, o desejável.

A acessibilidade representa, então, o conjunto de boas idéias que tiveram sucesso em atender, simultaneamente, as diferentes necessidades das pessoas portadoras de deficiência, e em facilitar a vida de todos. Nesse conjunto, alternativas de uso do espaço construido estão sempre presentes para que a pessoa possa optar por aquela que melhor se ajusta às suas necessidades, sem constrangimentos, sem a perda do seu poder de decisão, e na medida do possível, com independência. Por exemplo, o transporte público contém ônibus que reservam assentos para pessoas que supostamente não possuem equilíbrio para uma viagem em pé. Contudo, o aviso dos assentos para reserva de lugares para pessoas com deficiência na mobilidade não obrigam as pessoas a deixarem seu lugar para outros, principalmente quando é duvidosa a relação de maior necessidade entre um e outro passageiro. Entende-se como “preferencial” ou “prioritário” o sentido expresso na mensagem do assento ao poder de escolha de uma pessoa que usa muletas em ceder seu lugar para uma senhora de idade avançada. É de se esperar, contudo, que nessas circuntâncias, outros assentos fiquem liberados para aqueles que mais os necessitam sem qualquer aviso ou sinalização. Além disso, o ônibus permite o acesso livre para usuários de cadeira de rodas. Isso é acessibilidade se manifestando na relação inter-pessoal. Outro exemplo está na fila do caixa bancário onde muitas vezes, por constrangimento, pessoas necessitadas se sujeitam a uma fila “especial” composta só de idosos e de portadores de deficiência. Essa fila de pessoas com necessidades especiais ocorre de forma paralela à fila dos clientes com condições físicas convencionais, sendo que o fato de não permanecer em pé pelo caixa disponível a necessidade premente. Solução seria o atendimento dessas pessoas com a oferta de assentos junto ao caixa segundo um sistema adequado de identificação de chegada, sem constrangimentos. Isso é acessibilidade se manifestando nas relações gerenciais da prestação de serviços.

A prática da acessibilidade não deve estar restrita aos edifícios públicos, e não é só responsabilidade da administração governamental. Cada organização administrativa deve conter seu programa de implantação da acessibilidade. É uma forma de garantir qualidade ambiental no espaço construido e nas formas de funcionamento dessas organizações. A acessibilidade deve abranger, por exemplo, as formas de atendimento em locais onde os recursos que caracterizam cada deficiência são dificilmente reconhecidos ou sequer imaginados pela população inconsciente. Trata-se, por exemplo, do atendimento em restaurantes que oferecem cardápios em linguagem Braille. dos programas de resgate e de fuga dos edifícios de vários andares em caso de incêndio.

Muitas vezes, pensa-se em propiciar acessibilidade para clientes e usuários de um local mas esquece-se de que ela deve existir para os funcionários que prestam os serviços. Afinal, os clientes de um local são trabalhadores noutro local. E, devemos nunca esquecer, deficiência pode ocorrer a qualquer instante, em qualquer lugar. Como exemplo, consideremos uma agência bancária. Por questões de segurança, os sanitários não se destinam ao público, geralmente, mas ao pessoal da administração ou em situações de emergência. Prevendo sanitários acessíveis, a gerência do banco pode resolver situações constrangedoras de clientes cujas condições físicas exigem a emergência da higiene, como é o caso de mães com crianças pequenas, senhoras grávidas, pessoas com incontinência urinária ou intestinal. Por outro lado, em caso de acidentes, funcionários que estiverem temporáriamente sob efeito de uma deficiência, como andar com pernas ou membros engessados podem se utilizar dos sanitários acessíveis e, então, continuar a frequentar o trabalho normalmente.

Como podem ver, acessibilidade é fruto de decisões e de um posicionamento intelectual baseado na compreensão global de problemas que nos atingem a todos, e, para os quais, estamos despreparados. Estamos despreparados emocionalmente para lidar com a deficiência, para lidar com mudanças, para lidar com o desafio do desconhecido, e, por causa disso, somos levados a nos distanciar desse fato.

Agimos conforme nossos pensamentos, mas o que pensamos hoje não é fruto da razão. Está mais embasado na fantasia de um modelo de vida do que na realidade. Não somos imortais, mesmo assim não damos tanta atenção à vida. Na verdade, a morte se insinua em cada minuto de nosso ciclo. E, para viver plenamente, deveríamos estar preparados para aceitar a mudança e aprender com isso. Estaríamos, então prontos para renascer sempre, como indivíduos, como sociedade, como cultura. Em troca, negamos mudanças e nos apegamos ao que queremos acreditar como sendo o saber. Sonhamos à noite e durante o dia. Sonhamos muito que vamos melhorar como indivíduos e como povo, mas de fato muito pouco fazemos para isso ser razão de viver. Precisamos acreditar mais em acessibilidade a cada instante de lucidez.

A acessibilidade se torna uma realidade quando está presente entre os valores da vida. Ela revela um espírito aberto, uma mente disposta e jovem. Assim, pensar em acessibilidade não significa só ser solidário com os problemas dos outros, mas ser ativo na melhoria da condição de vida de si próprio e dos seus familiares. Um dia fomos crianças, outro dia iremos envelhecer, e temos, a cada momento, a chance de viver deficiências nossas e dos outros. Devemos nos habituar em pensarmos o quanto é importante viver num ambiente construido sem stress, sem barreiras. Devemos aceitar com naturalidade que é bonito e desejável viver a velhice com plenitude. De nosso lado temos a passagem gradual do tempo que pode nos preparar para isso. Por outro lado, devemos estar alerta para algumas mudanças da vida que ocorrem sem aviso prévio. Para isso, a acessibilidade deve se consolidar como um bem cultural e um fato natural. Dessa forma, não iremos nos desesperar caso, por acidente, viermos a ter nossas condições físicas alteradas de maneira tão drástica e irreversível, a ponto de não podermos executar nossas atividades como estamos acostumados a faze-las, ou como consideramos natural vermos outras pessoas faze-las. Afinal, a vida continua. Ela se transformou. É só.

A acessibilidade permite que todo um povo aprenda a se preparar para tais mudanças pois ela dá a chance de convívio entre as pessoas que antes viviam em mundos isolados e distantes. O ensinamento é natural pela simples troca de experiências entre iguais, onde uma pessoa portadora de deficiência não depende de outra pessoa aparentemente sem deficiências para poder decidir como usar os recursos do espaço à sua volta, e que estão disponíveis para ambos na medida certa. De outro modo, a pessoa portadora de deficiência aprende que não precisa esperar a ajuda de outros para desempenhar seu papel como cidadão, como trabalhador, como amigo e companheiro, como pai ou mãe de família, como pessoa madura que deve chegar a ser.

Numa nação onde as pessoas não vivem mais o impacto desfavorável de uma deficiência, o resultado é uma atitude de respeito humano, de confiança no indivíduo, de contribuição ativa para o trabalho conjunto e para o sucesso de todos. Nessa nação, o idoso ensina sua experiência e o jovem vê esse modelo e quer aprender, crescer; o aposentado se dedica a aperfeiçoar sua experiência de vida para o resgate de seus sonhos; o portador de deficiência se descobre no desenvolvimento das habilidades que possui; pobres e ricos querem construir algo em comum.

De fato, a acessibilidade não é a única esperança para a evolução deste mundo, mas se constitue na base da inclusão, por certo, uma diretriz de valorização da vida de pessoas que sofrem os efeitos de uma deficiência permanente. A acessibilidade deve se manifestar numa idéia, num gesto, numa palavra, num projeto, numa construção, sempre.

Senão, a inclusão é imperfeita. Os excluidos se multiplicam. A infelicidade prolifera. O stress aumenta, tomando conta de tudo. A gente passa a contemplar essas coisas como infinita tristeza e a imaginar se haverá acessibilidade no céu.

Marcelo Pinto Guimarães
Belo Horizonte, 22 de agosto de 1998.

Revista USP, v. 1, p. 1/9, 2000.

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